Por mais contraditório que pareça, a solidariedade floresce nos campos mais afetados. Muitas vezes, ela surge como uma sobrevida em tempos difíceis, em que a saída, mesmo turva, é alcançada de uma maneira mais fácil com empatia e cooperação. Com a pandemia do coronavírus e suas consequências sociais e econômicas, as favelas se tornaram espaços ainda mais necessitados de assistência e amparo.
Muitas famílias já têm sofrido os reflexos do cenário do país em decorrência do coronavírus, mas algumas iniciativas vêm tentando amenizar essas consequências e levar auxílio a quem precisa. Na maior favela de Minas Gerais e segunda da América Latina não é diferente. Composto por oito vilas, o aglomerado da Serra tem mais de 120 mil habitantes, com cerca de 50 mil habitações.
Kika Pereira, presidente da Associação de Moradores da Vila Santana do Cafezal, reuniu líderes de cada uma das outras vilas para que possam atuar juntos na linha de frente da prevenção e do combate ao coronavírus no aglomerado. A Associação, atualmente com 52 voluntários, tem recolhido cestas e feito o cadastro de famílias para receberem essas doações.
A primeira remessa de cadastros foi aberta no dia 20 de março, com 3 mil famílias registradas até o dia 26. Até então, pouco mais de 1.700 cestas foram distribuídas, sendo que uma nova leva de cadastros começou nessa segunda (6).
"Fora a fome, o desemprego também está grande. Assistência do governo não tem nenhuma. Já tivemos casos de fome aqui no aglomerado, mas agora aumentou. Se não tem um movimento desse, as pessoas ficam desassistidas. Todo dia que chego aqui, tem muita gente procurando pelas cestas. Imagine só se não estivéssemos fazendo esse movimento?", questiona Kika.
No Brasil, cerca de 13,6 milhões de pessoas moram em favelas, segundo um levantamento do Data Favela, instituto de pesquisa voltado para as comunidades brasileiras. Esse valor supera, por exemplo, a cidade de São Paulo, município mais populoso do país. Um outro dado foi que 72% dos moradores revelaram que não tinham uma poupança para enfrentar reflexos da crise causada pelo coronavírus.
Máscaras e vídeo-aulas
Centro cultural com ações no aglomerado da Serra, o "Lá da Favelinha" também tem buscado formas de ajudar as vilas na reação à pandemia ao coronavírus. Em parceria a outros movimentos, tem captado doações financeiras e cestas básicas para distribuir. Além de vídeo-aulas de dança e empreendedorismo pela internet, em substituição às oficinais que eram oferecidas presencialmente todas as semanas, o projeto também tem produzido máscaras. Elas são doadas a pessoas que atuam na linha de frente com a distribuição de cestas, com o restante sendo vendido no valor de R$ 5,00.
"A máscara é dupla face, com tecido 100% algodão, e tem a praticidade de lavar e pode usar de novo. Vendemos a preço de custo e enviamos para vários lugares. Já mandamos para Rio de Janeiro e São Paulo, além da própria comunidade. Quem quer buscar aqui, marcamos horário com as pessoas para buscarem as máscaras para evitar aglomerações. Mas também temos nosso motoboy, que faz a entrega dessas máscaras. Temos tomado cuidados, como limitar o acesso ao ateliê apenas para as costureiras", conta Cysi dos Anjos, produtora executiva do Lá da Favelinha.
Os relatos apontam que a maior parte das iniciativas no aglomerado da Serra vem de doações de pessoas físicas e movimentos, como o Espalhe Cestas. Este projeto tem recolhido dinheiro para reverter em cestas básicas, que têm sido distribuídas em várias regiões da capital. Para isso, a campanha foi criada em 22 de março por meio do site "Vakinha Online", tendo arrecadado mais de R$ 353 mil reais até a tarde dessa segunda. Segundo Kika Pereira, o poder público ainda não foi muito incisivo com ações nas comunidades neste tempo de enfrentamento à pandemia.
"Pra não dizer que não teve nada, teve o cadastramento [de alunos matriculados] da rede municipal para receber cestas básicas, mas e a rede estadual? Temos quatro estaduais e três municipais aqui no aglomerado, então tem essa preocupação. Esse cadastramento da prefeitura ajuda a aliviar, mas o poder público poderia atuar mais. O prefeito e o governador deveriam olhar mais para dentro das comunidades. Temos nos virado com pessoas físicas e movimentos", comenta.
A reportagem procurou o Governo do Estado de Minas Gerais para saber se há ações sendo pensadas para as comunidades do Estado, mas não teve retorno até a publicação desta matéria. Já a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informou que existem aproximadamente 365 mil moradores em áreas informais de vilas e favelas, sendo 218 vilas, favelas e conjuntos habitacionais produzidos pela PBH para o reassentamento de famílias.
"Essas áreas, denominadas como Zonas Especiais de Interesse Social, são regiões edificadas onde o poder executivo tenha implantado conjuntos habitacionais de interesse social ou que tenham sido ocupadas de forma espontânea, nas quais há interesse público em ordenar a ocupação por meio da implantação de programas habitacionais de urbanização e regularização fundiária, urbanística e jurídica", comunicou a PBH.
Sob o olhar acadêmico
A realidade das comunidades da capital neste período de pandemia do coronavírus também aingiu o âmbito acadêmico. Três pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) publicaram uma nota técnica, na última sexta (3), com desafios e propostas para o enfrentamento da COVID-19 nas periferias urbanas. Nela, há propostas para serem testadas e implementadas pelas autoridades, com uma análise das condições habitacionais e sanitárias dos domicílios urbanos no Brasil e na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
"O avanço da Covid-19 no Brasil nas últimas semanas tem tornado evidente a seletividade social das medidas recomendadas de higiene e isolamento ante à realidade das periferias urbanas (favelas, bairros periféricos, ocupações etc.), espaços com maior propensão à disseminação do novo coronavírus", traz a nota. "Torna-se premente que o Poder Público adote medidas estruturais e emergenciais que sejam sensíveis às desigualdades sócio-espaciais das cidades brasileiras e que contemplem ações focalizadas nos assentamentos informais, complementarmente às medidas socioeconômicas voltadas à proteção dos grupos mais vulneráveis", colocam os pesquisadores.
A nota, que pode ser consultada ao clicar aqui, é assinada pelo economista João Tonucci Filho, professor da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG, mestre em arquitetura e urbanismo e doutor em geografia; por Pedro Araújo Patrício, economista e mestrando em economia no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar); e por Camila Bastos, arquiteta e urbanista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG.
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