Duzentos e noventa quilômetros e quatro horas de carro separam o município de Três Pontas, no Sul de Minas Gerais, da capital do Estado, Belo Horizonte. O trajeto pela BR–381, que liga uma cidade à outra, havia se tornado rota constante na vida de Liliane Figueiredo, 31, de seu irmão e de sua mãe para encontrar o pai João Azevedo, 78, que está internado no Hospital Luxemburgo desde o segundo mês do ano com sequelas causadas pela síndrome de Guillain-Barré – doença autoimune que provoca, entre outros sintomas, fraqueza muscular progressiva.
Em março, a romaria entre os municípios foi bruscamente interrompida após o anúncio de que as visitas estavam suspensas em função da pandemia de coronavírus. A medida foi tomada em vários hospitais e, apesar de necessária, trouxe medo, solidão e abatimento para pacientes e seus familiares.
“Quando soubemos que não permitiriam mais visitas, ficamos muito preocupados em como contaríamos para ele sobre o coronavírus (quando João chegou ao hospital, ainda não havia casos da Covid-19 no Brasil) e como explicaríamos que não poderíamos mais vê-lo. O hospital permitiu que nós fizéssemos uma última visita para falar”, conta Liliane.
O desafio foi, então, se despedir temporariamente do pai. “Nós falamos que era uma gripe, uma doença que chegou da China e que era muito contagiosa. Não sabíamos se ele tinha entendido porque, apesar de estar consciente, meu pai não consegue falar”, explica. Como mecanismo para aplacar a solidão dos internados e acreditando na importância do núcleo familiar para a recuperação dos pacientes, hospitais iniciaram protocolos para conectar aqueles que estão internados, por meio da tecnologia, a filhos, companheiros, irmãos e amigos.
Dias se passaram após o encontro derradeiro entre Liliane e o pai. A angústia, no entanto, não demorou a cessar. “Quando eles me ligaram e contaram que fariam chamadas por vídeo todos os dias, nos emocionamos muito. Eu já acordo e fico o dia inteiro esperando a ligação. Nas primeiras vezes, quando ia chegando a hora, sentia um frio na barriga e até palpitação”, detalha a filha.
A tecnologia possibilitou ainda um encontro impossível mesmo antes dos primeiros casos de coronavírus. Após três meses internado, João pôde rever a netinha de apenas dois anos e meio. “Desde que ele se internou, não tinha encontrado minha filha porque ele está no CTI, e nós não a levamos até lá. Quando eles se viram, ela falou para ele que o vovô ia melhorar, que estava com saudade. Ele se emocionou muito, e isso deu forças para ele. Nós percebemos, vimos pelo olhar dele…”, disse.
Os poucos minutos de duração da chamada de vídeo são suficientes para que a família troque mensagens de apoio. “O mais importante é que todo dia nós podemos falar para ele assim: ‘a gente te ama muito, e a gente tá com saudade’. E ele responder pelo olhar que também está com saudade, e às vezes por gestos no pescoço, balançando, fazendo que ‘sim’, que também está com muita saudade. Esse contato traz muito conforto”, conta.
Luto pela separação
A dor da separação entre pessoas que se amam em função de uma internação, principalmente reforçada com a suspensão das visitas nos hospitais, pode ser comparada à sensação de luto por morte. “O fato dos pacientes estarem em isolamento acaba gerando um luto, não um luto de morte, mas um luto pela perda, por não poder mais ver ou ter contato”, esclarece a médica Sarah Ananda Gomes, especialista em cuidados paliativos e responsável pela implantação do protocolo de visitas virtuais no Hospital Felício Rocho.
“Quando o paciente está em contato com a família mesmo à distância, isso torna tudo mais tranquilo. Aliás, quando houve comunicação entre os familiares durante a internação, o reencontro é muito mais fácil. Na Itália, esse encontro pela internet só estava sendo feito quando o paciente chegava à fase final da vida, apenas para se despedir mesmo. Mas, nós acreditamos que essa visita virtual precisa acontecer durante toda a internação, isso ajuda na recuperação de quem está no hospital”, completa.
Não dá para matar a saudade, mas dá para declarar amor
“Quase toda noite choro de saudade. Não sei o que seria de mim sem a Jackeline”. Morador de São José da Lapa, na região Central de Minas, José Francisco da Silva Filho, de 58 anos, retrata, com essas palavras, como se passaram as últimas cinco semanas, desde a internação de sua mulher, Jackeline de Oliveira, 48.
Após uma temporada no CTI da Unimed, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, para cuidar de uma séria infecção, ela foi transferida na última terça-feira para um dos quartos do hospital, mas, mesmo assim, não está autorizada a encontrar o marido, com quem é casada há 35 anos, nem os dois filhos, já adultos, e os netos – um menino de 5 anos, a quem ela é muito apegada, e um bebê, que nasceu dois meses antes da internação dela.
Assim como em outras unidades de saúde da capital mineira, os encontros presenciais também estão suspensos nos hospitais próprios da rede Unimed-BH por segurança, em função da pandemia do coronavírus. Para aliviar o sofrimento de pacientes e entes queridos, eles participam de encontros online e, ao longo de três minutos, podem ver pela tela os olhos das pessoas amadas. As visitas são combinadas, e, na hora marcada, os funcionários do hospital explicam ao paciente que ele poderá reencontrar a família por aquele breve período.
Por volta das 12h da última segunda-feira (4), José Francisco já começava a preparar os filhos, as noras e os netos, que moram com ele no mesmo lote, para o encontro com Jackeline, marcado para acontecer às 15h30. No contato, além dos beijos enviados através da câmera, ela perguntou rapidamente sobre os filhos e, antes de desligar, pediu para ver a cadelinha da casa. Devotos de Nossa Senhora Aparecida, os sete integrantes da família se uniram no quintal para rezar uma Ave-Maria e um Pai-Nosso com a mãe, que, mesmo após ter sido submetida a uma traqueostomia, conseguiu sussurrar baixinho a saudade que sente.
Aquela visita virtual foi a terceira, mas não menos comovente que as anteriores para José Francisco. “Eu me lembro da primeira vez, foi muito emocionante, eu ‘disgramei’ a chorar. Já tinha muito tempo que eu não a via, desde que ela foi internada ‘correndo’. Nós choramos de cá, ela também de lá, e nos demos muita força”, relatou o marido. Ele conta que o neto, de 5 anos, também se emocionou muito. “No dia 21 de abril foi aniversário dele, e ela não estava, ele ficou supertriste… Não desejo que ninguém passe por isso que estamos passando, de ficar longe. Mas vê-la, mesmo que à distância, nos conforta”, diz.
Jackeline é parte de um grupo de pacientes que adoecem de uma hora para a outra. Arrancada rapidamente dos braços da família por uma infecção que começou apenas com uma dor de dente, a mãe deixou um vazio na casa. “Foi muito rápido. E a Jackeline, nossa senhora, é a cabeça da casa. Eu tô sem chão. Sabe o que é você estar mexendo nas coisas e tudo que você pega, lembra dela? Lembro do jeito que ela gosta das coisas, e não sei se tá desse jeito. Fica a sensação de que tá faltando alguma coisa, e pior que tá”, desabafa José.
As primeiras pontadas no dente da dona de casa começaram em uma sexta-feira de março. Uma semana depois, o marido a levou até o hospital da Unimed, onde os médicos a transferiram imediatamente para o CTI. “Depois disso, já não pude participar de mais nada”, conta José que, desde então, não mais a viu pessoalmente. O encontro pela internet, que começou a ser implantado no hospital no mês de abril, possibilitou que os dois pudessem se reencontrar.
Necessidade de escuta
Longe de quem se ama, superar a doença torna-se ainda mais complicado, e muitos pacientes começam a apresentar quadros de ansiedade e depressão, é o que defende a especialista. “Nós não temos dúvidas, hoje, de que as relações humanas são essenciais e que o aspecto emocional afeta diretamente o aspecto físico. Um exemplo simples é que alguns pacientes ficam ansiosos se estão distantes da família, a dispneia (falta de ar) é exacerbada pela ansiedade e a dispneia piora a ansiedade”, aponta Sarah.
O protocolo dos encontros on-line determina que um aparelho telefônico ou tablet será levado até o leito do paciente. Médico ou enfermeiro seguram o equipamento e deixam que o internado converse com os familiares que estão do outro lado da tela. A orientação de conectar entes queridos não deixa de ser respeitada mesmo em casos de pacientes que estão inconscientes ou entubados.
“Uma família chegou a pedir para mandar um áudio para o paciente. Algumas pessoas questionaram no começo do projeto sobre como faríamos e se a pessoa que está inconsciente realmente pode escutar. Nós temos vários trabalhos que mostram que a audição dessas pessoas pode estar preservada sim, e que essa escuta da voz de um familiar pode impactar diretamente nos sintomas físicos.. Nós precisamos cuidar das pessoas, de suas biografias e histórias de vida, não apenas focar em tratar de um órgão ou curar a doença”, completa a médica.
Parabéns online
O dia 16 de março amanheceu conturbado para a fotógrafa Sheila Agda, 39. Indisposta, ela teve que passar a noite sentada para conseguir respirar sem sufoco. Com dor na garganta e medo de ter contraído o coronavírus, Sheila procurou a UPA JK, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. De lá, foi transferida às pressas para o Hospital Municipal de Contagem, onde recebeu – sem a presença da família, por medidas de segurança – um diagnóstico assustador: leucemia.
“Foi um susto, fiquei sem chão. Repetiram exames de sangue que detectaram uma baixa contagem de plaquetas. Eu não esperava nunca uma notícia como essa”, conta. Confirmada a suspeita inicial, a fotógrafa precisou ser transferida para o Hospital Luxemburgo, na capital.
“Com a pandemia, não podia receber visitas. Fiquei sem ver meus filhos (de 11 e 15 anos) ao longo de todo esse tempo, o contato era só por celular”, relembra. Ela conta que os encontros online ajudaram muito na sua recuperação. “Eu já estava muito debilitada com a doença, as reações da quimioterapia. Só de ter o conforto deles, a palavra deles… Isso me fortaleceu muito”, comenta.
A angústia de ser internada pela primeira vez na vida, com um diagnóstico de leucemia, piorou às vésperas de 15 de abril, data em que ela comemorou aniversário enquanto ainda era cuidada na enfermaria. O dia é uma das datas preferidas de Sheila, que na manhã daquela quarta-feira sequer imaginava receber uma visita à distância organizada pela família, e ainda uma mensagem de parabéns com direito a balões preparada pela equipe do próprio hospital.
“Estava meio triste, achei que não ia ver ninguém. Mas, de repente, meu marido me disse para olhar pela janela, e lá estava minha família. O pessoal do hospital levou balãozinho, cantou parabéns, acendeu vela, fez uma oração”, conta. O retorno para casa aconteceu alguns dias depois, após uma melhora que surpreendeu até mesmo os médicos.
Hospitais se preparam
Exemplo. O Hospital Eduardo de Menezes, referência no tratamento de casos da Covid-19 em BH, também adotou as visitas virtuais em abril. Boletins médicos também são atualizados através das ligações.
“Essa é uma forma de acolher as famílias e tentar diminuir a dor da distância e da separação. Ouvir a voz de um ente querido e vê-lo pode minimizar a saudade. É uma chance de humanizar esse momento muito delicado para todos”, detalha a psicóloga da unidade de saúde, Andréa Resende dos Reis.
Doação. O Hospital das Clínicas da UFMG, em BH, recebeu nove tablets para os encontros entre pacientes e familiares. A doação é parte do projeto Construção de Materiais para UTIs no Enfrentamento da Covid-19, da Escola de Enfermagem da UFMG. A campanha arrecada tablets de todo o Brasil para repassá-los aos hospitais cadastrados na iniciativa.
“A campanha se destina ao Brasil inteiro uma vez que o afastamento das famílias de seus parentes internados não é um problema local, mas um dano causado pela pandemia. O ‘Conectando Vidas Covid-19’ pretende arrecadar esses equipamentos de pessoas físicas e pessoas jurídicas do país inteiro, que podem se cadastrar para doar através do nosso site", comenta Andrezza Werli – a professora divide a organização do projeto com a psicóloga Márcia Vieira.
Participe. Oitenta e dois ambulatórios já se inscreveram para receber tablets. Dos 400 aparelhos solicitados, 25 foram coletados por enquanto. Interessados em doar podem procurar os responsáveis do projeto no Instagram @covid19.uti.ufmg.
Mín. 11° Máx. 24°