As dores no seio já vinham de tempos quando a artista plástica e maquiadora Maya Braga, 39, começou a se preocupar que aquele fosse um sintoma de câncer de mama. Em uma consulta com um endocrinologista, ela quis saber se o uso de hormônios femininos feito por ela e por outras mulheres transexuais poderia aumentar os riscos de incidência da doença. A reação do médico lhe causou surpresa: “Ele disse que não tinha conhecimento sobre o assunto e que até achou interessante, porque eu era a primeira paciente que fazia essa pergunta”, comenta. Já João Maria, 29, membro da Academia Transliterária, reconhece que só ouviu falar sobre os riscos de tumores no tecido mamário em homens trans porque trabalha diretamente com a criação de políticas públicas para essa população. “Não é uma informação que encontramos facilmente”, cita.
A experiência deles é emblemática de uma realidade de invisibilidade que travestis e transexuais enfrentam também em relação ao acesso a serviços de saúde. “Estamos falando de uma fatia da população que é desconhecida para a maioria dos médicos e que não é alcançada por pesquisas e estudos em saúde”, avalia Tereza Cristina Ferreira de Oliveira, responsável técnica pelo setor de mamografia e radiologia intervencionista da Redimama. Ministrando cursos voltados para a comunidade médica, ela observa que há uma carência de informações sobre esse grupo social. “Faltam desde dados científicos até conhecimento sobre como acolher esses pacientes”, cita.
Entre as pesquisas sobre o tema, uma investigação publicada no periódico “The Journal of Sexual Medicine”, em 2013, analisou a ocorrência de câncer de mama entre transexuais de 18 a 80 anos com exposição a terapias hormonais com duração entre cinco e 30 anos. O estudo indicou que, no caso de mulheres trans, a incidência anual da doença foi estimada em 4,1 por 100 mil pessoas e, no caso de homens trans, em 5,9 por 100 mil. As taxas estimadas no artigo são superiores às registradas em homens cisgênero, em que a incidência é de cerca de 1 por 100 mil habitantes, de acordo com o Ministério da Saúde. Por outro lado, a ocorrência de câncer de mama em pessoas trans é significativamente menos frequente do que em mulheres cis. Considerando apenas esse recorte populacional, foram registrados, no ano passado, 59,7 mil diagnósticos novos da doença, o que representa uma taxa de ocorrência de 51,29 casos por 100 mil, informa o Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Alertando que o número de pessoas que participaram do estudo e a duração da exposição ao hormônio são limitados, o artigo sinaliza que “a administração de hormônio não parece aumentar o risco de desenvolvimento de câncer de mama em indivíduos transexuais”. No entanto, outra investigação concluiu que, apesar de os riscos absolutos serem considerados baixos, a ocorrência de câncer de mama aumentou durante um período relativamente curto de tratamento hormonal em mulheres trans. O estudo ainda detalha que as características da doença eram semelhantes a um padrão mais feminino.
Publicada na revista científica “The BMJ” em 2019, a pesquisa identificou, em uma população de 2.260 mulheres transgênero, 15 casos de câncer de mama e, entre 1.229 homens trans, quatro diagnósticos positivos. Segundo os pesquisadores, as chances de desenvolvimento de carcinomas em trans femininas seria 46 vezes maior em relação a homens cisgênero, mas significativamente menor em relação às mulheres cis. A recorrência da doença entre trans masculinos seguiu o mesmo padrão: é mais comum em comparação a homens cis e menos em comparação a mulheres cis.
Mesmo que as pesquisas verifiquem um risco menor para essa parcela da população, a radiologista Tereza de Oliveira teme que a falta de informação sobre a necessidade de prevenção ao câncer de mama e os obstáculos enfrentados por pessoas trans para ter acesso a serviços de saúde se tornem uma barreira levando ao agravamento do quadro clínico desses pacientes. “A maioria não sabe que pode vir a desenvolver a doença e, por isso, o diagnóstico pode ser feito apenas muito tardiamente. E, se o tumor já está em estágio avançado, o prognóstico tende a ficar comprometido”, diz. Neste sentido, vale lembrar que, quanto mais precoce for feita a detecção e iniciado o tratamento, melhores são as chances de cura. Sabe-se que, se tumor estiver no estágio inicial, as chances de cura chegam a 95%. Mas, para que o problema de saúde seja tratado com eficácia, é fundamental que hospitais e clínicas estejam preparados para receber esse público, o que não é uma realidade.
“Muitas dessas pessoas evitam consultórios por conta de constrangimentos, que já começam na recepção: se a identidade não foi retificada, correm o risco de serem chamadas pelo nome que está no documento, e não pelo nome social”, observa Tereza, sublinhando que, no caso das trans femininas, o uso de óleos minerais ou parafina para aumentar o tamanho dos seios prejudica o rastreamento da doença – tanto em exames de toque quanto nos de imagem. Diante dessa realidade, a especialista em diagnóstico de tumores por imagem das mamas passou a incluir nos cursos que ministra dados sobre a incidência e as medidas de prevenção recomendadas para essa parcela da população. Ainda assim, ela acredita que o esforço é insuficiente. Tereza observa que ações de conscientização devem ser mais amplas, estimulando que pessoas travestis e transexuais sejam incluídas nas políticas de saúde preventiva.
“Em 30 anos de atendimento clínico, recebi apenas duas pacientes trans. Sempre que converso com colegas de outros Estados, noto que a realidade é parecida. É um número insignificante, que mostra como o acesso aos serviços de saúde é mais precário para esse grupo social”, argumenta, lembrando ainda que boa parte dessas pessoas estão em condições de vulnerabilidade socioeconômica. Para se ter uma ideia, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a prostituição é a única fonte de renda de cerca de 90% dessas pessoas.
Para Rhany Merces, 35, coordenadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros em Minas Gerais (Fonatrans), a falta de pesquisa e de acolhimento adequado reflete uma situação de descrédito e de estigma em relação a esse grupo social. “Não podemos ignorar o fato de existir uma transfobia estrutural, que sempre tenta nos colocar à margem”, argumenta.
Além disso, ela reflete que a baixa expectativa de vida reduz as chances de investigações mais sólidas, de forma que ainda são pouco conhecidos os problemas de saúde mais recorrentes na população trans e idosa. Para se ter uma ideia, segundo a Antra, mulheres trans vivem apenas 35 anos, em média. “Não temos tempo de vida para adoecer”, resume a militante ao lembrar que o câncer de mama, por exemplo, é mais incidente a partir dos 50 anos.
Rhany também critica a ausência de campanhas de conscientização sobre a cuidados em relação ao câncer de mama voltadas para a população trans. Algo que a Antra já vem questionando. “Infelizmente, a falta de representatividade nas campanhas de conscientização também faz com que pessoas trans não procurem ou não saibam da necessidade da prevenção contra o câncer de mama, que é suscetível a pessoas de qualquer gênero. Não debater significa não reconhecer esta questão, esta possibilidade”, lê-se em nota da entidade sobre o tema.
Câncer de mama em homens e mulheres trans
Além do risco de desenvolvimento de tumores na mama inerente a todo ser humano que possui glândula mamária, médicos temem que o uso de hormônios sem acompanhamento de profissionais – uma realidade para muitas pessoas trans – possa ampliar as chances de ocorrência da doença. Embora não existam pesquisas específicas sobre o tema, alguns profissionais da medicina lembram que há evidências de que a terapia de reposição hormonal feita durante a menopausa em mulheres cis aumenta a incidência de câncer de mama neste público.
No caso de homens trans, o procedimento de mastectomia subcutânea – pelo qual se chega ao desenho de um tórax com aspecto masculino – reduz a chance de surgimento de tumores, mas não anula as possibilidades de a doença se desenvolver. Isso porque a retirada pode não ser completa e o tecido residual pode ser acometido pelo câncer. Por isso, assim como aqueles que optaram por não fazer a cirurgia de retirada da mama, os que fizeram a retirada parcial devem estar atentos ao surgimento de nódulos na região.
Recomendações. A Sociedade Brasileira de Mastologia e o Colégio Brasileiro de Radiologia recomendam que pessoas trans adotem uma postura preventiva em relação à doença, estando em alerta no caso de perceberem a presença de nódulos nos seios. É importante lembrar que o uso de parafina e de óleos naturais para aumentar o volume do órgão costuma camuflar esses pequenos carocinhos, reduzindo as chances de identificação da doença. De acordo com as entidades:
Mais prevenção. A radiologista Tereza de Oliveira reforça que, para além dos exames de câncer de mama, homens trans, assim como mulheres cis, devem realizar exame preventivo de colo do útero; e o exame do toque, para identificar a saúde da próstata, deve ser feito não só por homens cis como também por mulheres trans.
Ambulatório especializado. Inaugurado em Belo Horizonte no ano de 2017, o Ambulatório de Saúde Integral da População de Travestis e Transexuais, mais conhecido como Ambulatório Trans Anyky Lima, que funciona no Hospital Eduardo de Menezes, ligado à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), oferece assistência gratuita, efetiva e multidisciplinar especificamente para pessoas trans.
Foi por meio do atendimento neste espaço que a artista plástica Maya Braga conseguiu ser atendida por um endocrinologista e iniciar um processo de terapia hormonal adequadamente. Antes disso, desde os 23 anos, ela fazia aplicações das substâncias por conta própria. “Cheguei a usar até seis tipos de hormônios”, revela.
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