Ainda que movimentos de enfrentamento à violência contra mulher tenham criado e fortalecido redes que possibilitam o fim de ciclos dolorosos, o caminho para a dignidade plena das mulheres ainda é longo. Dados da Polícia Civil de Minas mostram que, apenas entre janeiro e julho de 2022, mais de 78 mil mulheres sofreram violência doméstica no estado.
As estatísticas mostram que as mulheres são submetidas a um papel de dominação, tendo em vista o contexto histórico da violência de gênero. Nesse sentido, entender mais sobre as diferentes formas de violência e como denunciar é imprescindível para que o debate se amplie e, consequentemente, a luta se fortaleça.
Papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres dentro de casa, como os cuidados com o lar, podem limitar os ambientes ocupados por elas, potencializando violências domésticas. Ao BHAZ, a psicóloga Juliana Oliveira explica que as mulheres sempre estiveram reduzidas a um lugar de submissão, tendo seus corpos e direitos violados sistematicamente.
A profissional de saúde destaca que as mulheres transitam hoje em lugares que antes não eram permitidos, mas com várias consequências.
“Hoje em dia, conseguimos ver um avanço através de muitas conquistas, mas entendemos que os corpos femininos ainda passam por dominação. As mulheres estão no ambiente de trabalho, de lazer, na família, ainda com pouca qualidade e muito medo”.
Também devido à questão socio-histórica que reforçou estigmas sobre o que é ser mulher, a violência contra o grupo é naturalizada. Assim, muitas vítimas encontram dificuldades em identificar agressões cotidianas, por menores que sejam, como, de fato, comportamentos violentos.
A violência doméstica, por exemplo, tende a ser uma combinação dos principais tipos de violência. Segundo a delegada Luciana Libório, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Belo Horizonte, mulheres são condicionadas, desde pequenas, a se contentarem com um relacionamento abusivo.
“Às vezes, a mulher nunca foi agredida fisicamente, então se você pergunta ela diz que não é violentada. Mas quando ela toma ciência do que seria uma relação respeitosa, descobre que estava sofrendo”. Apesar de a violência física ser a que deixa marcas na pele, outras cicatrizes existem e devem ser visibilizadas.
Ainda segundo a psicóloga ouvida pelo BHAZ, é possível identificar a violência psicológica através de humilhações, chantagens e ameaças, principalmente quando o agressor é uma pessoa próxima – quase sempre o companheiro romântico. A palavra da vítima é constantemente colocada em dúvida, o que compromete sua autoestima e confiança.
O principal dispositivo legal que atua em prol das mulheres no Brasil é a Lei Maria da Penha, que considera as cinco principais formas de violência: física, moral, psicológica, patrimonial e sexual (leia mais aqui).
Um exemplo recorrente, mas pouco debatido, é a violência psicológica, que só foi tipificada como crime em março do ano passado. Outra raramente comentada é a patrimonial, que serve de pano de fundo para, praticamente, todas as demais. No final das contas, é importante compreender que uma mulher pode ser agredida física, mentalmente e moralmente.
A Lei 14.132/2021 inseriu no Código Penal o artigo 147-B, que classifica a violência psicológica como “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”.
A pena prevista para quem pratica a violência psicológica é de seis meses a dois anos de reclusão, além de multa. Alguns exemplos, segundo a delegada Luciana, incluem monitorar o celular da vítima e reduzir o contato social dela.
Confira abaixo a definição de cada forma de violência:
Física: “qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal”;
Sexual: “qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”;
Patrimonial: “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. Um exemplo é quando o responsável legal, que detém os recursos financeiros, deixa de pagar pensão alimentícia para a mulher;
Moral: “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”. Por exemplo, acusar a mulher de traição ou rebaixá-la por meio de xingamentos.
A Lei Maria da Penha atua em conformidade com a Constituição Federal, além dos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro. Além de promover o combate à violência, o código estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
É comum que vítimas de violência doméstica ouçam frases indelicadas, como: “mas por que você continuou com ele e não denunciou?”. Ou, ainda, “por que só procurou a polícia agora, depois de tanto tempo?”.
Para a delegada Luciana Libório, revitimizar a mulher somente prolonga o sofrimento dela, além de, obviamente, culpabilizá-la. O maior desafio na delegacia de atendimento à mulher é, justamente, acolher as vítimas e ajudá-las a romper ciclos negativos.
“Muitas vezes, as pessoas não acreditam na palavra da mulher, e isso se alia à dependência emocional que ela nutre pelo agressor. Existe também a dependência financeira, uma ausência de rede de apoio, sem contar o despreparo das políticas públicas”, opina.
Juliana avalia que os estereótipos que recaem sobre as mulheres também acabam inibindo as denúncias. Afinal, ainda existe uma cobrança de que elas precisam “dar conta” do relacionamento, e uma supervalorização do “amor romântico”, sob qualquer circunstância.
“O homem é representado nessa construção social como o provedor da família, quem tem posse do dinheiro e também o poder, e isso está relacionado a ter o ‘direito’ sobre os corpos das mulheres”.
Entender que uma mulher próxima a nós está sendo – ou foi – violentada nem sempre é uma tarefa fácil. No entanto, determinados comportamentos indicam que algo pode estar errado.
Um dos principais sinais é o afastamento de amigos e familiares, em um movimento que acaba anulando as vontades da vítima em prol do parceiro. A psicóloga Juliana explica que até mesmo os trejeitos podem mudar, como a forma de se colocar nos lugares na presença do agressor.
Juliana avalia que a sociedade tem responsabilidade sobre a violência de gênero, ainda mais sendo um debate tão embrionário.
Segundo explica, é muito importante desmistificar o antigo ditado popular “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. A naturalização da violência ocorre não somente no lar, mas também no ambiente de trabalho e até mesmo na rua.
Em casos de violência sexual fora de casa, por exemplo, existem maiores chances de a vítima denunciar o caso. Seja qual for a agressão, a delegada reforça que a vítima não deve ser julgada em momento algum: pelo contrário, precisa ser acolhida e respeitada em sua situação de vulnerabilidade. Ampliar os debates sobre o assunto é imprescindível para que ele seja de fato compreendido.
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