O artigo 149 do Código Penal Brasileiro diz que condição degradante de trabalho, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida configuram o trabalho análogo à escravidão. Procuradora do Ministério do Trabalho em Minas, Melina Fiorini diz que há registros de resgate de trabalhadores com idades entre 20 e 40 anos e pessoas acima de 60 anos, sempre em situação de vulnerabilidade social.
“Às vezes pode ser a única opção de sobrevivência e, por isso, o perfil de quem é explorado é sempre o mesmo, independente da idade. São pessoas socialmente vulneráveis e essa vulnerabilidade permite a manutenção desse tipo de relação”, observa. Fiorini ressaltou que houve registro de cobras em espaço utilizado por trabalhadores, além da negação em fornecer chuveiros elétricos e cobertas para quem trabalhava em cultivo de café no período da geada intensa que ocorreu em Minas durante o inverno.
Outro problema identificado é no fornecimento de alimentos impróprios para consumo e água não potável às pessoas exploradas. “Nos assusta essa situação degradante, parece que retrocedemos anos”, lamentou. Para o professor de Direito do Trabalho da Puc Minas Matheus Mendonça a crise econômica vivenciada no Brasil com consequência de quase 20 milhões de pessoas passando fome, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (Rede Penssan), expõe ainda mais trabalhadores às condições análogas à escravidão.
“É muito comum que o contratante arque com deslocamento, alimentação, hospedagem dos trabalhadores, mas depois cobra isso em valor muito superior ao que o trabalhador tem direito de salário. O trabalhador sempre estará devendo quem o contratou ficando aprisionado nessa situação”, comenta.
A liderança de Minas Gerais no número de resgates de trabalhadores em condições similares à escravidão não é um sinal somente negativo, segundo o professor da Faculdade de Direito da UFMG e coordenador da Clínica do Trabalho Escravo, Carlos Haddad. Ele acredita que as libertações reforçam a efetividade das fiscalizações feitas no Estado. Em Minas, até 30 de setembro, segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, foram fiscalizados 54 estabelecimentos.
O número de inspeções em todo o Brasil foi de 234. “Até meados de 2010, a fiscalização era muito concentrada em áreas rurais e, de algum tempo pra cá, começou-se a focar também nas atividades em meio urbano. Há casos relacionados à construção civil, empregados domésticos que ficaram anos trabalhando em regime análogo ao trabalho escravo”. São responsáveis pela fiscalização o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Secretaria de Inspeção do Trabalho, Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF) e Defensoria Pública da União.
As empresas com registros de trabalho escravo passam a integrar uma “lista suja”, que é mantida pelo Governo Federal. Todos os empreendimentos inseridos no relatório perdem opções de financiamentos públicos, créditos para empréstimo, dentre outras sanções. Uma vez inserida na relação, a empresa ficará com o nome na listagem por até dois anos. A reportagem solicitou ao Ministério do Trabalho e Emprego a versão atualizada da lista, mas a página indicada no site do órgão está fora do ar.
Um estudo da Clínica do Trabalho Escravo da UFMG apontou que a cada 100 empregadores acusados na justiça criminal por manter trabalhadores em condições de escravidão, apenas 4 são punidos. “O nível de impunidade é assustador”, critica o professor Carlos Haddad. O docente destaca que durante os processos trabalhistas é possível obter as indenizações de direito dos trabalhadores. Todavia, na esfera criminal, muitos juízes desqualificam as condições vivenciadas por quem esteve mantido em situação similar à escravidão.
Entre as justificativas apresentadas pelos magistrados estão a de que os trabalhadores não tinham a liberdade restringida ou que estavam sendo mantidos em condições naturais às quais essas pessoas estavam acostumadas. “Essa percepção não tem a concordância do Supremo Tribunal Federal (STF) e nem do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas às vezes os processos não chegam às instâncias superiores e se resolvem em primeiro grau”, lamenta.
O professor Matheus Mendonça diz que há casos em que foi comprovada a oferta de alimentos vencidos e inaptos para consumo humano, mas não houve comprovação da limitação do direito de ir e vir do cidadão e, por isso, houve absolvição dos réus que mantinham o trabalho escravo. “Os juízes são muito lenientes com esse tipo de comportamento. Só caracterizar a escravidão apenas por limitação de direito de ir e vir é um absurdo. Submeter uma pessoa a condições degradantes, por si só, já caracteriza o crime”, opinou.
Mendonça ainda reforça que há omissão histórica do poder público em reprimir esse tipo de comportamento no Brasil. Na avaliação dele, a pena prevista no código penal também é baixa, de dois a oito anos, para quem submete trabalhadores à escravidão. Ele ainda sugere um apoio às políticas de superação da discriminação racial, possibilidades de qualificação profissional e ampliação da rede de proteção social do estado brasileiro. “As oportunidades de trabalho precárias chegam às pessoas necessitadas na ausência do estado”.
O Brasil é signatário das convenções nº29 e 105, da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tratam da abolição do trabalho escravo. Ao seguir as normas, o país assumiu compromisso internacional de enfrentar o trabalho forçado.
A Clínica do Trabalho Escravo da UFMG presta assistência jurídica gratuita a trabalhadores vítimas de exploração, desde 2015. Mais de 100 pessoas já foram auxiliadas em processos para solicitar indenizações e demais procedimentos para regularizar a situação trabalhista. Interessados podem entrar em contato pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone: (31) 99449-2272.
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