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Um ano em busca da filha que vivia em condição análoga à escravidão

A reportagem foi à casa de Valdete, em Mateus Leme, após o reencontro dela com Cíntia; mãe e filha relatam as dores e angústias

03/04/2021 às 08h47 Atualizada em 03/04/2021 às 09h02
Por: Redação Fonte: Mega Cidade com O Tempo
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Os pés fatigados de Valdete Domingos, 57, não escondem a peregrinação vivida por ela ao longo de 12 meses à procura da filha Cíntia Cristina Domingos, 34. Ela conta que percorreu os mais de 300 km² do município de Mateus Leme, na região Central de Minas, onde mora com a família, atrás da primogênita. Em 5 de março do ano passado, Cíntia, que é aposentada por ter uma disfunção cognitiva, saiu de casa após receber uma oferta de emprego como doméstica por parte da ex-patroa da mãe, que lhe prometeu uma bicicleta, roupas e viagem e pediu que ela não avisasse ninguém.

Em cárcere, sem salário, com sua aposentadoria confiscada e obrigada a alimentar-se com restos, Cíntia foi mantida em condições análogas à escravidão em um casarão em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Sem saber que a filha estava em outro Estado, a mãe, insone, saía diariamente à caça da filha e, longe de quaisquer informações sobre o paradeiro de Cíntia, não nutria mais esperanças de encontrá-la viva.

“Eu não queria mais viver. Para quê viver? Teimosa, não tinha hora, não, sem medo, eu saía a qualquer hora para procurá-la. Qualquer um que falava: ‘olha, viram a Cíntia em tal lugar, naquele morro’, eu saía e ia… Eu só acreditava que ela não estava lá quando ia. Eu andei por Mateus Leme inteira. Conheço cada buraco, buracos por onde ninguém nunca passou, eu passei. Eu entrava em lugares ‘barra pesada’ e falava: ‘olha, gente, eu só estou procurando minha filha’. Eu andei tudo, e não sabia mais onde ir”, relata Valdete Domingos, em um pranto de encharcar o rosco, com as mãos colocadas nos braços da primogênita Cíntia e da caçula Talita, 18.

Cíntia Cristina Domingos, 34

Filha e mãe uniram-se na segunda-feira (29) depois que Cíntia conseguiu fugir do cárcere, e a delegacia de Polícia Civil do Mato Grosso do Sul entrou em contato com a sede da corporação mineira. Desnutrida e com tremores pelo corpo, Cíntia viu a mãe pela primeira vez, após quase 13  meses, na porta do Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins, na região metropolitana, trazida em um avião em operação conjunta das polícias Civil e Federal. A ex-patroa de Valdete e suspeita de escravizar Cíntia, uma mulher de 70 anos, tornou-se alvo de investigação.

“Se eu pus no mundo, quero aqui comigo”

Com pontas dos dedos tamborilando sobre a mesa na entrada da residência, que tem um único pavimento na parte de trás de um lote, Valdete Domingos é corriqueiramente lembrada pela caçula, Talita, sobre pormenores dos meses à procura de Cíntia. Com o olhar perdido no quintal à tarde de quinta-feira (1º), ela e a adolescente confidenciaram momentos de angústia.

“Minha mãe não dormia. Começou a usar remédios para dormir. A pressão dela aumentou…”, cita Talita. “Meu coração disparou, eu via a Cíntia correndo, perdida, nos meus sonhos. Se eu pus meus filhos no mundo, quero eles comigo. Eu entrei em colapso. Eu não dormia, só vegetava”, detalha a mãe. “Quando eu cheguei da clínica depois de alguns meses de internação por depressão, olhei para minha mãe, ela parecia uma capa de costela. Que sofrimento era aquele?”, completa Talita.

A indisponibilidade de informações sobre a filha tornou desassossegada a rotina de Valdete. “Eu não tinha esperanças. Achei que a encontraria morta. Essa situação foi me machucando por dentro. Eu perdi minha noção. Eu só queria ela aqui, queria ela em vida aqui. A Marlene (ex-patroa) não presta… Foi um choque. Por quê ela tratou minha filha assim? Desapareceu com ela? Eu nunca machuquei os filhos dela…”, questiona a mãe.

Empregada doméstica, Valdete foi contratada pela suspeita – dita “Marlene” – há nove anos e permaneceu trabalhando para ela até vésperas do início da pandemia de coronavírus, responsável tanto pelos cuidados domésticos no sítio da mulher – em um bairro chamado Icaraí – quanto pelos filhos dela. Valdete, no período de contratação foi obrigada a mudar-se para Belo Horizonte por três meses, onde trabalhou para a suspeita à capital mineira – recebeu R$ 300 para tal, e sua própria filha mais nova, Talita, foi obriga a trabalhar para a mulher identificada como Marlene.

“Nós trabalhamos por três meses para ela, em Belo Horizonte, em 2019. O que recebemos foi R$ 300, tudo picado, pelos três meses. Eu era menor de idade, e minha mãe só me levou porque não tinha ninguém para cuidar de mim. Ela prometeu me pagar, prometeu me dar roupas, ajudar com carteira de moto. Não recebi nada”, esclarece Talita. À época, também faltou-lhes comida. “Ela não deixava a gente comer lá. Eu entrava na despensa e comia, sem dó, sem piedade. Minha mãe dizia para eu não mexer, mas eu não ia ficar sem comer. Entrei na despensa, comi, peguei coisa e levei para minha mãe no quartinho”, não esquece a adolescente.

‘Ela me comprou’

Lembranças esparsas compõem o quebra-cabeça da memória de Cíntia Cristina Domingos, 34. O que o trauma não apagou da memória são recordações sobre agressões sofridas, mal-estares pela má alimentação fornecida e seu estado de saúde e promessas nunca cumpridas feitas por Marlene para mantê-la por perto. “Quando ela me chamou para trabalhar disse que iria me comprar uma bicicleta, roupas, me levar para sair, para morar em São Paulo… Ela só prometeu. Nunca deu”, disserta. A disfunção cognitiva de Cíntia, como esclarece a irmã, impede que seu comportamento seja condizente com uma mulher de tal idade. “Ela não pode trabalhar, então, nós conseguimos aposentar ela pouco antes dela sumir. A Cíntia pensa igual criança, gosta de desenhar, de colorir, de pintar”.

Complicações de saúde, como o mioma, entretanto, não impediram que a suspeita a atraísse. Feitas as promessas, Cíntia decidiu mudar-se para a propriedade da mulher sem comunicar à família – por orientação da própria suspeita. Primeiro, ela foi levada para o sítio no bairro Icaraí, em Mateus Leme, e, nove meses depois, foi transferida para um casarão pertencente à suspeita em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul – nesse ínterim, também passou por outros imóveis da mulher em São Paulo e Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. “A primeira vez que quis fugir, ela mandou dois homens que trabalhavam com ela, pedreiros que mexiam com drogas, me pegarem. Um segurou minhas mãos, outros minhas pernas. Tudo porque eu falei que ia embora, que ia fugir. Eles diziam: ‘você não sai, não sai, daqui você não sai’. Um disse que ia me matar”. “Ela me obrigava a trabalhar, não me deixava comer… Só me dava restos”, relata.

A fuga finalmente foi possível após mais de doze meses de cárcere, na capital sul mato-grossense. “O filho dela morava em Campo Grande, eu disse que ia para a igreja, ele deixou. Nesse dia eu me perdi, não conseguia achar a igreja, foi aí que um policial me ajudou. Eu contei que queria voltar para minha família e ele me levou para um lugar onde deixam mulheres desaparecidas”. Àquela hora, Cíntia foi deixada em uma delegacia onde investigadores descobriram que ela estava desaparecida.

“A polícia de lá ligou para cá e me pediram que fosse encontrá-la. Colocaram ela em um avião, e o carro da delegacia me buscou às sete da manhã, e fui para o aeroporto de Belo Horizonte”, relembra Valdete. “Ela não me reconheceu, está muito doente. Quando eu vi ela, eu gritei: ‘ô, Cíntia, não está reconhecendo a mãe, filha?’. Abracei ela, mas ela tremia muito por conta do estado de saúde. Ela já estava em colapso, teria morrido se demorasse mais…”, completa. Cíntia Cristina Domingos foi levada logo depois de chegar a Minas Gerais para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Mateus Leme. Ela foi medicada, mas, os tremores permanecem.

Parecenças com a ficção

Andanças de Valdete Domingos, 57, à procura da filha por Mateus Leme e Belo Horizonte se assemelham à trajetória percorrida pela personagem Lurdes (Regina Casé) em “Amor de Mãe”, exibida na faixa das nove horas na Rede Globo. A telenovela com autoria de Manuela Dias narra a procura de Lurdes por seu filho Domênico, vendido na infância pelo próprio pai a uma traficante de crianças que o leva para o Rio de Janeiro. Lurdes sai do Nordeste do país e muda-se para a cidade para encontrá-lo, peregrinação parecida com a de Valdete atrás de Cíntia. “Eu (Talita) e minha mãe saímos em Mateus Leme, fomos a Belo Horizonte, rodamos todos os lugares com a foto da Cíntia”, relembra a irmã.

Investigação

A Polícia Federal (PF) no Mato Grosso do Sul assumiu a investigação sobre a exploração de Cíntia Cristina Domingos, 34, pela mulher de 70 anos. Segundo a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), a suspeita já foi qualificada, bem como o filho dela que teria participação no crime, mas eles não foram encontrados. A delegada Lígia Barbieri Mantovani, da corporação em Mateus Leme, esclareceu que Valdete registrou o desaparecimento da filha apenas no início de janeiro. Entretanto, à ocasião, mediante o relato, não havia indícios de crime.

Detalhes coletados pela polícia sul-mato-grossense depois da fuga de Cíntia é que esclareceram a situação. “As informações que nós temos são que a vítima foi levada à força para o Mato Grosso do Sul, e lá foi obrigada a prestar serviços domésticos sem remuneração, comia restos e era proibida de manter contato com outras pessoas ou de se locomover. Quando conseguiu sair, foi ajudada em uma igreja da cidade. Tudo aconteceu no domingo (21 de março) e a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher da cidade nos procurou. Foi como conseguimos trazê-la”, pontua a delegada.

Na última quarta-feira (31), dois dias após o retorno de Cíntia, o marido da suspeita teria ido até a residência da família para pedir que a vítima assinasse um documento. “Esse marido dela veio aqui e queria que a Cíntia assinasse esse papel. Eu disse que a gente não ia assinar sem a Talita ler antes e falar se podia. Quando a Talita pegou para ler, ele tomou da mão dela e foi embora”. Além de ser suspeita do crime de manter trabalhador em condição análoga à escravidão, a mulher de 70 anos também teria roubado a aposentadoria de Cíntia. “Ela me tirou tudo. Tudo que eu tinha. Comeu minha aposentadoria, todo mês ela sacou”, relembra.

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