Na casa da catadora de recicláveis Joana Hermenegilda da Silva, 48, o Natal vai ter só arroz e feijão para alimentar os nove moradores. “E um suquinho, se tiver. E tem que agradecer a Deus por ter isso”, revelou a moradora do bairro Cabana do Pai Tomás, na região Oeste de Belo Horizonte. Ela e seus seis filhos estão entre os mais de 116 milhões de brasileiros que sofrem algum nível de insegurança alimentar no país, segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). Entre esses, 19 milhões vivem a situação mais grave – a fome.
Mais da metade da população brasileira sofre algum grau de falta de alimentos. Realidade que fica ainda pior com a inflação acima dos 10%, pois a cada dia fica mais difícil comprar todos os alimentos necessários para garantir ao menos três refeições. Quem ganha um salário mínimo precisa trabalhar por quase 120 horas para comprar os alimentos básicos, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). E quem não tem renda vai ter que contar com a solidariedade para não ter um Natal com fome.
Assim como muitos moradores de vilas e favelas de Belo Horizonte que ficaram com a renda comprometida durante a pandemia, Joana pôde alimentar os filhos com as cestas básicas que vieram da prefeitura ou de doações. Os R$ 150 que ela consegue levantar por mês coletando recicláveis são usados basicamente para comprar o gás de cozinha. Pouco sobra para comprar alimentos fundamentais para uma alimentação saudável.
A última vez em que entrou carne na casa dela foi há cinco meses. Os legumes e verduras estão nas refeições, mas graças aos produtos garimpados ao fim do dia nos fundos de um sacolão. A catadora leva para casa aqueles produtos que já não são bons para a venda. “O pessoal joga fora umas verduras e aí eu pego o que tem de melhorzinho delas”, relata Joana.
Na casa da irmã dela, Shirley da Silva, 41, a situação é a mesma. Os dois filhos, de 11 e 14, cobram da mãe uma situação melhor. “No dia em que eles mais pediam, era quando mais faltava comida. Eles falavam: ‘a gente tá em fase de crescimento’, mas eu respondia: ‘não tá tendo”.
Questionada sobre qual seria seu Natal dos sonhos, Shirley não pediu muito: quer os filhos de banho tomado, com muita paz. Em cima da mesa, um peruzinho, um arroz temperado e refrigerante.
Líder comunitário do Cabana e professor do projeto Fica Vivo, Gleisson Rodrigues Batista, 38, está sempre em busca de doações de alimentos para as muitas famílias que sofrem com o desemprego. “Mas nem sempre é suficiente para atender a todos. Eu vejo quais são as famílias que precisam mais, aquelas com mais moradores. Tem gente que reclama, que pede mais cestas, mas é complicado definir quem vai receber”, relata o líder, conhecido como Zoi.
Direito à alimentação adequada
A nutricionista Melissa de Araújo, coordenadora da Comissão Permanente de Direito Humano à Alimentação Adequada do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea-MG), explica que a alimentação das famílias não pode ser restrita somente às cestas básicas e é preciso garantir que elas tenham possibilidade de escolha por alimentos mais saudáveis, especialmente aqueles que podem ser comprados in natura.
“Nem sempre a distribuição de cestas básicas vai de encontro aos hábitos alimentares das famílias. E viola um princípio do direito humano à alimentação adequada porque essas cestas não conseguem dialogar com a dimensão maior da diversidade, do acesso e da disponibilidade de alimentos frescos, como as frutas, legumes, verduras, laticínios, carnes, que são muito importantes para promoção de uma alimentação adequada”, explica.
E quanto mais a inflação no país sobe, maior é o risco da maioria das famílias brasileiras não terem acesso aos alimentos fundamentais para uma alimentação equilibrada em nutrientes, carboidratos e proteínas. “O aumento de preços é um fator determinante para crescimento no risco alimentar, uma vez que as pessoas precisarão fazer escolhas não muito adequadas de alimentos para não vivenciar a fome”.
“As pessoas precisam poder sonhar”
Comida é sustento, mas também é desejo e dignidade. Na época do Natal, o foco de parte dos brasileiros volta-se ao preço do panetone e das carnes típicas da época e, mesmo em tempo de alta de inflação, alguns ainda conseguem diminuir gastos comprando algo mais barato - mas sem deixar de levar comidas especiais para casa.
Mas para famílias em situação de insegurança alimentar, conseguir acesso ao mais básico pode ser um desafio, muitas vezes suprido por doações de governos e ONGs. Já satisfazer ou mesmo nutrir desejos - um biscoito de manhã, uma ceia farta, uma fruta fresca - é uma realidade distante. Não à toa, pipocaram pelo país as cartinhas escritas por crianças para o Papai Noel pedindo carne para a noite de Natal. O principal desejo passou a ser uma ceia digna.
“Temos que evoluir para que as pessoas possam ter desejo e satisfazê-lo. Isso é um direito fundamental. As pessoas precisam poder sonhar, planejar e fazer as coisas mínimas, dentre as quais a alimentação. O desejo passa longe das populações periféricas, ele está apenas no imaginário, mas dificilmente poderá ser atendido neste momento. A lógica é a da sobrevivência”, diz o professor de nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e nutricionista voluntário do projeto Comunidade Viva Sem Fome Gilberto Simeone.
O projeto distribui cestas básicas a uma média de 1.400 famílias por mês na Grande BH e, explica Simeone, tenta incluir agrados saudáveis nas cestas quando é possível, porém precisa privilegiar a base da alimentação, já que os recursos são limitados. “A cesta emergencial prioriza os alimentos não perecíveis e que vão garantir a energia e nutrientes importantes. Mas também temos que tentar enxergar para frente, para que essas famílias possam ter acesso a legumes, frutas e verduras, alimentos perecíveis muito importantes”, continua.
Em comunidades mais carentes, a solidariedade pode fazer a diferença para garantir a segurança alimentar dos moradores. Líder comunitária em uma ocupação do bairro Califórnia, na região Oeste de BH, Geni Mendes, 48, faz questão de buscar doações variadas para um local onde cerca de 70% dos adultos estão desempregados. “Tem os sacolões aqui da região que nos ajudam, tem o pessoal do Ceasa. Se vem dez quilos de batata, a gente dá meio quilo para cada um”, relata Geni, que incentiva os moradores a trocarem alimentos conforme a necessidade. “Falo lá no grupo de WhatsApp: fulana precisa de açúcar. Alguém tem para trocar por outro alimento? Aqui é povo ajudando povo”.
A diretora do braço mineiro da Central Única das Favelas (Cufa Minas), Patrícia Alencar, moradora do Morro do Papagaio, na região Centro-Sul da capital, reforça que a solidariedade vai ser fundamental para garantir que as famílias consigam vivenciar uma noite prazerosa em família na noite de Natal. “Essas são as pessoas que sempre contribuíram para o crescimento do Brasil, que sempre saíram de casa às 7h para trabalhar, fazerem os serviços, e agora estão sem ter o que comer. Levar uma ceia para que pudessem comer com os filhos no Natal, um doce diferente ou um frango assado, seria um afago nessas pessoas”, diz.
Falta leite no café da manhã
A reportagem de O TEMPO perguntou a moradores de duas comunidades de Belo Horizonte qual é o alimento que mais faz falta na prateleira. Todos disseram que está cada vez mais difícil comprar leite, um alimento fundamental para o café da manhã de muitos brasileiros.
“O que não tem na cesta básica é o leite, é um biscoito para dar para as crianças de manhã. Não tem como falar para a criança, quando acorda, que vai dar arroz e feijão para ela. A criança quer um pão, um leite, um biscoito”, relata a manicure Geni Mendes, líder comunitária na Vila Califórnia.
De acordo com o IBGE, leites de derivados tiveram aumento de 8,41% em Belo Horizonte nos últimos 12 meses. Uma pesquisa realizada em novembro pelo site Mercado Mineiro em padarias da capital indicou que o leite longa vida está custando de R$ 4 a R$ 5,20.
Nem todos estão no CadÚnico
Para receber o Auxílio Brasil, a família deve estar cadastrada no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Mais de 30 milhões de brasileiros estão registrados como pessoas em situação de pobreza no sistema, mas nem todos que passam fome no país estão no banco de dados.
O desconhecimento muitas vezes impede o acesso de necessitados aos programas governamentais. A diarista Cláudia Caetano, 33, perdeu o Bolsa Família por não ter atualizado o endereço quando se mudou. E justamente quando mais precisa de um auxílio para cuidar das duas filhas, ela aguarda por um atendimento presencial no Centro de Atendimento de Referência Social (Cras) para resolver a situação. Com as filhas de 4 e 5 anos em casa, ela depende da solidariedade da comunidade para ter comida na mesa.
“Eu faço reuniões, mando informações pelo WhatsApp, faço de tudo para informar e incentivar as pessoas a fazer o cadastro do CadÚnico”, relata Geni Mendes.
Patrícia Alencar, da Cufa, lembra que muitos não podem ter acesso aos auxílios governamentais por não se encaixarem no perfil do CadÚnico. “A favela tem pequenos empresários que venderam tudo na pandemia e não estão no CadÚnico, por exemplo, ou não têm mais filho em idade escolar para receber cesta da prefeitura”, explica.
Como doar
Comunidade Viva Sem Fome
Doações mensais de R$ 25 a R$ 200 ou doação única de qualquer valor, pelo site https://www.comunidadevivasemfome.org.br e pelo Pix (31) 99862-8040.
Cufa Minas
Doações pelo site cufaminas.org/#Colabore e pelo Pix 07.648.380/0001-14
Comida que Abraça
Projeto quer levar ceia completa a 120 famílias. Mais informações pelo instagram: @_comidaqueabraca. Pix: [email protected]
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